Essa noite sonhei com pintinhos. Sim, pintinhos. Enquanto mexia com ovos, talvez meia dúzia, dois deles nao tinham gema. Tinham pintinhos. Feios. Nojentos.
Como uma coisinha escura, úmeda, morna. Deixei esses dois ovos de lado. Com nojo e receio de algo tao morto e tao vivo. Me afastei. A consciencia pesa.
Sim, ela pesa e todos conhecemos essa sensaçao. Culpa. Nao havia checado se era algo com vida. Algo morto. Ou pior, algo lutando para viver.
Voltei, abri o primeiro ovo, coloquei na mao aquela bolinha de pequenas e molhadas penas. Nao era amarelinho, era escuro, com sangue e proteínas. Era quente e latejava.
Estava meio vivo. Avancei pra longe de meu pessimismo nato de meio vazio e nunca meio cheio e quis salvar a coisa nojenta. Se estava meio vivo era melhor viver.
Escondi a bolinha entre as duas maos, tentava proporcionar calor, soprava algo quente como quem quer limpar com a manga da camisa uma janela. Baforava vapor, soprava vida.
O pintinho latejava, seu pequeno coraçao se movia e eu sentia.
Pouco a pouco sua cabecinha feia se movia, o ajudei a descolar suas asas molhadas, o limpei com as maos sujas de sua propria coisa.
Como era sonho e meu otimismo existia, em pouco tempo o pintinho marrom acinzentado estava de pé. Era hora de preocupar-me com seu irmao. O caso era mais grave. Essa
bolinha havia esperado mais tempo por calor, era mais pequena e muito mais úmeda. Meu otimismo existia. Um coraçao pulsava. Estava meio vivo. Se estava meio vivo
era melhor viver. E também viveu. Essa noite sonhei com pintinhos. Sim, pintinhos. Feios, nojentos. Vivos. Essa manha eu resolvi viver. Meio úmeda, meio feia. Mas
deixei o pessimismo de lado e resolvi escrever.